Na trilha da educação: juventude do Caju ocupando a universidade

O que significa entrar em uma universidade?

Para algumas pessoas é o destino natural da vida estudantil. Depois de finalizar o ensino médio com uma instrução equilibrada, escolher o curso e área que deseja atuar, fazer a prova do Enem (ou o antigo vestibular) e esperar ser chamado em alguma universidade. A partir daí, é hora de colher os frutos educacionais, financeiros e culturais oferecidos com todas as boas possibilidades de crescimento.

Em outros casos, entrar em uma universidade é um ato de resistência e determinação. Para jovens que vivem em territórios marcados pela violência, com frágil garantia de direitos, tais como educação, cultura e lazer, o caminho é muito mais tortuoso e repleto de dificuldades

No bairro do Caju, no Rio de Janeiro, a realidade é complexa e tem raízes mais profundas. A comunidade ocupa a posição de número 111 no ranking de IDH da cidade, possui atualmente 8 escolas públicas, sendo apenas 2 de nível médio, e poucas possibilidades de estudo para quem deseja ingressar em algum curso superior.

A Fundação Gol de Letra, em 2016, iniciou as atividades do programa Juventude e Oportunidade, que tem o apoio do Instituto Nissan, oferecendo um curso preparatório para o Exame Nacional do Ensino Médio, o famoso Pré-Enem, que, no último ano, apresentou números e histórias bastante relevantes. Foram 7 alunos e alunas aprovados em 10 diferentes cursos, incluindo a UERJ, UFRJ, UniRio, PUC, IBMR, Unicarioca e Celso Lisboa.

Crislaine Lima, coordenadora do Juventude e Oportunidade, acredita que “a realização de um preparatório para o acesso ao ensino superior é um compromisso político desta instituição com os jovens do território, a medida que estamos construindo a médio e longo prazo uma perspectiva formativa que rompe os paradigmas sócio históricos impostos as juventudes das periferias da cidade do Rio de Janeiro. “

Se os números são considerados positivos, as histórias de vida são ainda mais surpreendentes. Segundo Karina Avelar, assistente social responsável pelo programa, “Trabalhar com juventudes é desafiador e as juventudes do Caju, que tive oportunidade de estar e conhecer, têm uma história de resistência e estão mostrando ao que vieram! Nossa proposta com o Pré-ENEM foi além do ensino para o exame e outros vestibulares, nos comprometemos com as (os) estudantes na construção de um espaço de discussão sobre a realidade do território em que moram, com a realidade da educação no Brasil e o pertencimento aos espaços, criando e recriando os saberes coletivos e fomentando a construção de uma consciência crítica coletiva, formando pessoas protagonistas para construir mudanças. Nosso comprometimento é com a luta pela democratização e reformulação do ensino no país, principalmente em um contexto de corte de direitos e ataques à educação. ”

Você vai conhecer agora um pouco da vida da Julia Ferreira, Jéssika Mota, João Victor, Vanessa Calixto, Gigiane Bernardo, Flávia Silva e Roseni Araújo. Entre casos, emoções e crenças, eles mostram um pouco da luta, da garra e da perseverança para realizar o sonho de entrar em uma universidade.


Julia Ferreira, 19 anos – Moradora do Caju

Aprovada para o curso de Enfermagem – IBMR

“Essa nova etapa da minha vida está sendo um grande desafio. Eu confesso que ainda não acreditei, a ficha não caiu. Temos que ‘se’ adaptar a um novo estilo de vida mais acadêmico, de mais estudos. Muitas vezes, isso é difícil por conta do nosso histórico e do bloqueio de educação que se apresenta aqui na favela. Estou muito feliz, orgulhosa de mim, e espero poder virar referência para outras pessoas que moram aqui no Caju”

“Aqui na Fundação Gol de Letra, a minha carga histórica é bem extensa. Entrei em 2009, como aluna do programa Dois Toque e permaneci por um bom tempo.  Essa participação inicial quebrou muitos paradigmas em minha vida, o que foi muito importante para a construção de quem eu sou. Ao longo dos anos, tive várias oportunidades, troca de conhecimentos, novas experiências. Fiz intercâmbio, fui monitora, fui jovem-aprendiz. Foram 10 anos de minha vida aqui dentro! ”

“Ano passado surgiu a oportunidade de fazer o Pré-Enem, recebi muito incentivo da equipe e resolvi participar. A metodologia de formação pessoal/social é essencial. Aprendi a argumentar de verdade, sobre diversos assuntos, aprendi a me reconhecer como pessoa, como mulher.

“O grupo de mulheres também foi fundamental em minha vida, um apoio incrível, o verdadeiro significado de companheirismo entre as mulheres. Nos reuníamos para falar sobre questões que rondam o nosso dia a dia, e que tornam mais difícil permanecer no curso, como o machismo, por exemplo. Esse grupo, além de falar de questões de gênero, foi uma ferramenta fundamental para as participantes se fortalecerem como mulher. Companheirismo, sororidade, ajuda conjunta: isso foi crucial para o nosso empoderamento verdadeiro. ”

“O grupo de mulheres foi muito impactante e tenho convicção que ele nos deu mais capacidade até para o desenvolvimento em sala de aula. Me sentia cada vez mais à vontade para poder opinar e dialogar em sala. Foram fatores cruciais para aprender a ouvir, falar e, de fato, se manifestar perante o mundo. ”

“A formação pessoal também é totalmente importante. Quase tudo que sou hoje, como ser político, é por causa da Fundação. Educadoras, assistentes sociais e toda a equipe. Eu não seria quem eu sou se não fosse por elas. Aprendi a olhar todo mundo com empatia, sei que pertenço a esse território e tenho orgulho disso. Entrar na faculdade é um marco para minha vida.


Jessika Mota, 29 anos – Moradora do Caju

Aprovada em Ciências Sociais – PUC, Bolsa 100%

Aprovada em Ciências Sociais – UERJ, 1º lugar entre os cotistas

“Meu sentimento é de sonho realizado, de dever cumprido mesmo, sabe? Acho que tenho muitas respostas que posso dar para a sociedade, principalmente realizando meu trabalho e dando continuidade ao legado que recebi aqui na Fundação Gol de Letra. ”

“A questão da construção dos argumentos foi um dos pontos mais importantes trabalhados aqui na Fundação Gol de Letra, dentro do Juventude e Oportunidade. Conseguimos nos expressar e colocar para fora nossos sentimentos. Um exemplo disso foi um dia que discutimos com toda a turma sobre as questões que envolvem a violência em nosso território e, logo no dia seguinte, fizemos uma redação sobre o assunto. Ou seja, construímos o argumento de maneira coletiva, ouvimos as diferentes opiniões e sentamos para escrever a nossa visão sobre aquele tema. ”

“A palavra-chave é a mudança de perspectiva. Quando estamos dentro da realidade da comunidade, não temos a visão do que podemos alcançar, e nem o acesso a essas informações. Ficamos muito limitados ao nosso território e não acreditam muito em nosso potencial. Estar na universidade é uma realidade muito distante para um morador de uma comunidade, mas, aqui na FGL, você é encorajado a acreditar nos seus sonhos e atingir seus objetivos. ”

“O Grupo de Mulheres fez diferença em nossas vidas. Uma diferença verdadeira mesmo, sabe? A maior parte das meninas do grupo acabou entrando na universidade e as outras ainda vão conseguir esse espaço, tenho certeza. O grupo nos provocada a questionar, a se manifestar e a aprender, cada vez mais, nossos direitos. ”


Vanessa Calixto, 21 anos – Moradora do Caju

Aprovada em pedagogia na UERJ

“Confesso que inicialmente eu estava muito desacreditada em mim e jamais esperava ser aprovada. Depois que caiu a ficha e que percebi que eu era capaz, fiquei muito feliz. Sou a primeira pessoa a fazer faculdade em minha família e fico emocionada com isso, sabe? ”

“A Fundação Gol de Letra é essencial em todas as nossas vidas e por isso guardo muita gratidão. No início, confesso que estava desmotivada, mas, depois da palestra do primeiro dia de aula, mudei totalmente o meu pensamento sobre a universidade e me motivou a correr atrás dos meus objetivos. Não foi fácil, era uma luta trabalhar e estudar, mas vale a pena. ”

“Eu admiro muito a Fundação Gol de Letra e a história que cada um construiu aqui. Muitas histórias compartilhadas e vivências incríveis. O grupo de mulheres conseguiu aproximar todas nós, com um objetivo em comum. A gente se dava apoio sempre. O objetivo ia muito além do programado, sabe? ”


Gigiane Bernardo, 29 anos – Moradora do Caju

Cursa logística na Unicarioca / Aprovada em Administração – PUC / Lista de espera em 1º lugar para Farmácia – UFF

“Experiência muito boa, muito nova. Ter a oportunidade de cursar uma faculdade é algo muito importante em minha vida. Tenho vontade de cursar tudo que for possível e adquirir cada vez mais novos conhecimentos. ”

“A equipe da Fundação Gol de Letra, principalmente a do Programa Juventude e Oportunidade, foi o ponto forte em todo esse processo. Karina e Estevão são muito presentes em nossas vidas e isso ajuda bastante. ”

“Quando eu fiz a inscrição no Pré-Enem, eu não acreditava que ia entrar. Quando fui sorteada, pensei que não queria aquilo, fiquei com receio. Resolvi participar e logo na primeira aula eles fizeram um acolhimento muito importante para todos nós. Eu tinha dificuldade para me expressar e argumentar, e depois fui me soltando para debater alguns temas que me ajudam até hoje. Sou muito grata. ”


Flavia Silva, 26 anos – Moradora do Caju

Aprovada em Arquivologia – Unirio

“Estou muito feliz, evidentemente. Foi uma prova tranquila para mim, com o respaldo do curso que fizemos aqui. Vivo hoje aquele sentimento de dever cumprido, com toda a ajuda que tive da Fundação Gol de Letra”

“Já participei de vários projetos da FGL. A formação pessoal que tenho aqui é muito importante. É claro que todo o conteúdo é primordial, mas os conselhos e conversas que temos aqui são sensacionais. Nossa formação é completa. ”


João Vitor, 19 anos

Aprovado em Psicologia – UFRJ

Aprovado em Licenciatura em Ciências Sociais – UERJ

“Eu nunca imaginava que eu ia passar. Quando saí da escola, estava meio desanimado, sabe? Depois de um tempo eu foquei muito nos estudos, aqui dentro, em casa, em qualquer lugar. E passei! Minha ficha ainda não caiu direito. ”

“Eu encontrei o programa por acaso. Minha tia viu uma propaganda e me falou para participar. Apareci aqui um dia, peguei uma senha e me candidatei. Vindo para cá, foquei muito no que era mais necessário, ou seja, os conteúdos, matérias e troca de conhecimento com amigos e professores.”

“A formação pessoal e social que existe aqui na FGL é muito interessante e essencial. Aqui no Caju tem muitas pessoas diversas e o bacana é entrar em contato com novas realidades. Um projeto como esse, que abriga todo mundo no espaço, é capaz de espalhar a informação e as possibilidades da educação. ”


Roseni Araújo, 32 anos – Moradora do Caju

Aprovada para Administração – Celso Lisboa

“Estou muito feliz! Eu não acreditava que isso aconteceria de verdade. Hoje, estou muito mais confiante, mais comunicativa”

“A Fundação Gol de Letra nos impulsionou muito e nos deu força para não desistir da faculdade. Antes daqui eu nunca tinha parado para estudar e nunca tinha pensando em entrar em uma universidade. Aqui eu tive esse incentivo que poderia conquistar, chegar lá. Tudo isso estava adormecido dentro de mim, mas essa luz me deu uma nova esperança. ”

“Sei que vamos nos tornar inspirações para as futuras crianças e por isso a responsabilidade é grande. Acho que elas já virão mais preparadas para isso, sabe? Eu, por exemplo, tive filho muito nova e abri mão de estudar, de cuidar de mim. Aos poucos, voltei a estudar com calma, me inscrevi no Pré-Enem e vi uma grande oportunidade.

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